sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Amores de Cortiça.

“Podem arrancar minha casca, 
Podem desnudar-me a cada nove anos, 
Continuarei por toda minha existência, 
A renovar com mais força e fartura a minha cortiça, 
Que tal qual um amor impossível, 
Só desaparecerá com minha morte. ” 

Thiago fazia sempre o mesmo percurso. Seguia pela estreita e sinuosa EM525 observando os sobreiros com seus troncos marcados pela retirada de suas cascas de cortiça. Fazia nove anos que não se encontravam. Estela fora com sua família morar em São Paulo, deixando para trás a Quinta da Serra Moura, de onde extraíam cortiça para abastecer os vinhedos do Azeitão. Uma oferta de trabalho fez com que seu pai levasse toda a família para o Brasil tentar uma vida melhor. Os tempos em Portugal estavam difíceis com as revoltas contra o regime Salazarista. O pai de Thiago era da PIDE, a Polícia Internacional de Defesa do Estado, e sempre teve suspeitas de que o pai de Estela fosse um revolucionário já que seu avô desaparecido, foi correligionário de Humberto Delgado. E a família de Estela sentia que os negócios estavam sendo prejudicados deliberadamente por fabricantes de rolhas, talvez pressionados pelo governo a sufocar aqueles contrários ao regime.  A despedida foi um momento de muita tristeza. E também de muita beleza. Thiago e Estela entregaram-se após um intenso namoro contido e oculto de suas famílias, por entre as árvores da floresta próxima ao Parque Natural da Arrábida. Pela primeira e última vez se desnudaram sem pudores ao pé de um vintanário sobreiro que havia sofrido sua primeira desboia, desnudado de sua cortiça virgem naquele mesmo dia. Thiago parou o carro. Saltou e caminhou por entre as árvores até chegar naquela que foi testemunha do apaixonado e último encontro. A marca no tronco indicava que a retirada da cortiça estava próxima. Nove anos passaram depressa. Thiago voltou para o carro e seguiu seu caminho até a Villa Fresca do Azeitão onde trabalhava. No caminho até lá, poderia seguir pela rodovia principal, a N379, mas sempre contornava margeando o parque e passando pelo portão sempre fechado da propriedade abandonada do pai de Estela, mantendo aceso o desejo de tê-la novamente. Os tempos eram outros. Marcello Caetano no governo dava sinais de dias mais tranquilos e livres. Thiago ainda guardava a única carta recebida após um ano sem Estela. As juras de amor eterno ainda eram intensas. Mas a falta de respostas às suas cartas fez com que ele tentasse outros amores que, sem sucesso, apenas serviram para ferir ainda mais seu coração e entristecer os corações das jovens que acreditaram ter nele o amor que sempre buscaram. Ao fazer uma breve curva, seu coração gelou. O portão da Quinta da Serra Moura estava aberto. Diminuiu a velocidade e pode ver um pequeno caminhão seguindo até a casa principal. _venderam a quinta – pensou alto dentro de seu carro. Era um sinal de que os seus últimos vestígios reais daquilo que vivera com Estela estavam se acabando. Thiago chegou na Quinta da Bacalhoa onde trabalhava na manutenção dos jardins à pedido pessoal de Mrs. Ornela Scoville, proprietária e responsável pela restauração da histórica quinta. Era início do verão e as temperaturas estavam aumentando fazendo com que Thiago se desdobrasse para manter o lindo jardim limpo, irrigado, podado e florido. Mesmo muito ocupado, a imagem de Estela não saía de sua mente.
Ao retornar para casa em Santana, Thiago fez o mesmo percurso de volta. Apesar de ser alta a tarde o sol ainda insistia em atravessar as copas das árvores do Parque Natural. Ao chegar próximo ao início do muro da Quinta da Serra Moura, começou a esticar seu pescoço tentando ver alguma coisa por cima dele, fazendo com que se distraísse da pista de betume recém colocado. De repente surgiu uma miúda que, assustada, ficou estática diante do seu carro em movimento. Thiago brecou e desviou para o acostamento quase atingindo o portão da Quinta. Ainda atordoado, viu pelo espelho a imagem de sua linda Estela pegando a menina no colo. Thiago saiu do carro e os olhos de ambos se encontraram. Estela, preocupada com sua filha, entrou na Quinta fechando o portão. Thiago não se conteve e correu até lá, chamando por Estela que fingia não ouvir e continuava a caminhar a passos largos como quem foge de seu passado.
Por mais alguns dias, Thiago passou outras vezes na frente da Quinta da Serra Moura que voltara a viver seus tempos de outrora com o movimento de camponeses contratados para a retirada da cortiça, e as carrinhas entrando vazias e saindo pesadamente carregadas. Numa tarde quente, feriado de Corpus Christi, Thiago sentiu-se tentado a ir até ao antigo sobreiro. Após vencer a rudimentar cerca de arame, seguindo os mesmos passos que seguia quando se encontrava com Estela, caminhou por entre a floresta até localizar a árvore que ficava nas terras da Quinta da Serra Moura. Experientes camponeses em suas longas escadas, retiravam as cortiças com seus machados usados para corte e cunhagem, enquanto as mulheres levavam as preciosas cascas até uma carroça. Um velho e magro tirador de cortiça subiu na tão cultuada árvore. Thiago, de longe e às escondidas, viu quando o tirador, com maestria deu seus cortes verticais no sobreiro, retirando a casca como quem despe uma linda mulher. O caule cor de ferrugem, assemelhando-se à pele queimada de sol, sem pudor pôs-se à mostra. A cortiça, a exemplo da primeira de nove anos atrás, seria triturada pois esta, sendo a secundeira, não se prestava à produção de rolhas. Da mesma forma, o coração de Thiago, que havia sido triturado a nove anos, seria triturado outra vez por sua paixão cega por uma mulher que, mesmo agora próxima, parecia-lhe cada vez mais distante. Os tiradores de cortiça juntaram seus equipamentos e foram embora, deixando o antes alegre campo cheio de cantigas, batidas de machados e conversas em voz alta, em completo silêncio. Thiago caminhou até o sobreiro lentamente com medo de ser visto e abraçou o tronco desnudo. Encostou sua face na fria árvore e ouviu o som de passos estalando as folhas secas e os restos de cascas cada vez mais alto. Voltou-se e viu assombrado, Estela se aproximando. Ainda preservava sua frescura jovial, sua pele branca e seus cabelos negros emoldurando seu rosto redondo de olhos azuis. Antes que ele pudesse dizer alguma coisa, Estela calou-o com o dedo indicador sobre seus lábios, beijando-o em seguida. Amaram-se sob o sobreiro, na relva sem importarem-se se eram ou não vistos, tamanho que era o desejo contido por ambos todos estes anos. Caídos com o torpor do êxtase, antes que Thiago despertasse, Estela vestiu-se e sem dizer nada, correu de volta para a sede da Quinta deixando ele ali, nu e imóvel como o sobreiro. Thiago levantou-se e encontrou junto às suas roupas um bilhete onde estava escrito:
“Levei comigo o seu amor contido 
Em outra terra tenho vivido 
O tempo curou meu coração ferido 
Este breve retorno não faz mais sentido 
Foi só para triturar de vez nossa paixão 
Pois já é de outro o meu coração 
Peço que encerre aqui sua procura 
Pois o outro que hoje me ama 
Pode tirar de mim lembranças queridas 
E pode acabar com nossas vidas” 

Thiago apertou o bilhete em seu peito com lágrimas nos olhos.
Naquela semana, Thiago não foi mais trabalhar. Ia até perto da Quinta da Serra Moura e lá ficava, sentado à beira da estrada olhando o movimento. Algumas vezes viu um grande e caro carro preto sair, com Estela, seu marido – bem mais velho que ela – e sua pequena e pálida filha. Sempre que isso ocorria, o marido de Estela olhava para Thiago, estranhando sua presença. Num sábado de chuva, o carro parou. Osvaldo, esposo de Estela, saiu e foi até Thiago perguntando, de forma agressiva, o que ele estava procurando e porque estava ali sentado todos os dias. Levantou Thiago pela camisa encharcada de chuva, empurrando-o como que enxotando um animal. Thiago olhou para aquelas mãos que agora o agarravam com a certeza de serem as mesmas que desfrutavam dos mais misteriosos detalhes do corpo de sua amada. Sem dizer uma palavra, Thiago saiu encarando os olhos de seu rival profundamente.
Depois deste incidente, Thiago voltou ao trabalho e recebeu a notícia que Mrs. Ornela havia adoecido. Os jardins estavam ressecados e as flores viçosas não mais existiam. Estavam áridos como seu coração. E isto certamente tirou o encanto do lugar afetando a alegre Ornela Scoville. Num ataque de fúria incontrolável, Thiago arrancou todas as plantas e arbustos e os que não conseguiu com suas mãos, cortou com uma foice como a morte nos tempos da peste.
Foi caminhando sem rumo, sujo de terra como um mendigo, até chegar ao centro da Villa Fresca. Sentou-se numa mesa da velha padaria que servia deliciosos pães e os famosos doces de Setúbal como o doce de laranja, a torta de Azeitão, os esses e os barquinhos de casca de laranja. Nesta tradicional padaria havia um dos únicos telefones da vila que podiam fazer ligações internacionais com o auxílio de telefonistas. Os de Santana faz muito não funcionavam. O já conhecido carro preto parou defronte à padaria e o esposo de Estela desceu indo logo ao telefone que ficava preso na parede lateral da loja. O que pode ouvir da conversa deixou Thiago ainda mais triste porém esperançoso de ter Estela outra vez. Osvaldo conversou com alguém no Brasil, dizendo que teria que voltar a São Paulo naquela semana pois sua filha havia piorado da grave doença e precisava dar continuidade ao tratamento. Estela iria ficar para continuar com a venda da cortiça, coisa que já tinha alguma experiência por conta de seu falecido pai. Antes mesmo de Osvaldo terminar a chamada, Thiago levantou-se e correu até a Quinta da Bacalhoa para pegar seu carro. Enquanto corria, corriam também as lágrimas por seu rosto num misto de dor e esperança que por vezes levava seus lábios a um quase imperceptível sorriso, aquele sorriso de culpa por ter na tragédia de outrem, a possibilidade de sua própria felicidade.
Thiago esperou pacientemente aquela semana passar. Parecia renovado e voltou com disposição ao trabalho refazendo os jardins da Bacalhoa com a ajuda de dois assistentes.
Num sábado, voltou até a Quinta da Serra Moura tentando encontrar Estela. Chamou um empregado que estava no portão e pediu a ele que anunciasse sua presença a Estela. Passados alguns minutos, o empregado retornou com um outro bilhete num envelope lacrado onde se lia:
“Já disse que não me procure mais. Minha filha está doente e minha dor é muito grande. Não venha aumentá-la pois nosso amor só cabe em nosso passado. Voltar a ele é encontrá-lo disforme e moído como a cortiça virgem de nossa primeira vez e a secundeira de dias passados. Nunca seremos rolha de boa qualidade em vinho raro. Nossas cortiças serão sempre pó que não se agrega. Adeus,
Assinado: E.”
Enquanto Thiago terminava de ler o bilhete, um funcionário do CTT veio entregar um telegrama para Estela. Thiago foi até seu carro e seguiu pela N379 até o Cabo do Espichel em Sesimbra. Saiu do carro e caminhou até a Capela da Memória. O vento forte não levava dele a vontade de morrer naquele momento. Do alto, avistava a falésia que o chamava a pôr fim em seu sofrimento. Faltou-lhe a coragem. A noite se aproximava e Thiago retornou a Santana derrotado por seus medos. Ao chegar, o mesmo carro preto da família de Estela estava parado em frente à sua casa. Antes mesmo de chegar perto, assustado, viu Estela saindo do carro e correndo em sua direção aos prantos. _Me perdoe! Me perdoe! – gritava ela, atirando-se nos braços de Thiago. _Perdi minha filha! Perdi minha filha! E não quero voltar para o Brasil. Nada mais me prende por lá!
Sem entender o que estava acontecendo, Thiago tentou acalmá-la de seu choro convulsivo levando-a para dentro de sua casa. Acomodou-a numa poltrona e foi preparar um chá de erva-príncipe para acalmá-la. Era a única erva que havia em sua simples cozinha. Quando retornou à sala, encontrou Estela adormecida, exaurida emocionalmente. Thiago a pegou no colo e acomodou em sua cama sem que ela acordasse.
Duas semanas se passaram e Thiago já parecia outra pessoa. Apesar de ainda esconder seus encontros com Estela, sentia-se um jovem apaixonado. Estela se recuperava rapidamente da morte de sua filha mas Osvaldo insistia que ela voltasse ao Brasil. Lá os tempos de ditadura militar eram favoráveis a ele e a sua empreiteira. Havia conseguido a construção de uma hidrelétrica e não poderia deixar o país por conta dos compromissos que o deixariam mais rico e influente. Por sua vez, Estela não queria voltar, criando um impasse que terminaria na separação do casal. Os encontros eram sempre na casa de Thiago onde Estela passava as noites. Logo pela manhã, antes da alvorada, seguia para casa antes mesmo dos empregados acordarem. Osvaldo escrevia constantemente. As primeiras missivas continham a emoção da perda da filha e alguma expressão de carinho com Estela. Já as últimas se transformaram em textos ameaçadores caso ela não retornasse ao Brasil. Estela insistia em não responder e temia um dia receber a visita indesejável de Osvaldo na Quinta. Ela só não sabia que estava sendo seguida por membros da PIDE, a pedido de influentes agentes do governo brasileiro que trabalhavam na Embaixada Brasileira em Lisboa. Os relatórios sobre as atividades de Estela eram passados para Osvaldo, que arquitetou um plano ardiloso para que ela voltasse definitivamente ao Brasil.
Thiago voltava para casa seguindo direto pela N379, não mais passando pela frente da Quinta pois tinha a segurança de estar quase todos os dias com Estela. Esperava poder um dia desposá-la após a definitiva e legal separação. Numa sexta feira, já planejando sair para jantar com Estela em Setúbal, onde passariam o final de semana, ao chegar em casa viu um carro suspeito perto de sua casa. Dentro dele, dois homens de fato preto. Ao sair do carro, os dois correram até ele e antes mesmo de abrir a porta de casa, Thiago foi covardemente espancado pelos homens que também não foram poupados pois ele reagiu atingindo um deles que ficou desacordado no chão. O outro agressor retirou do coldre uma arma e com ela enfiada em uma das narinas de Thiago disse por entre seus dentes cobertos de sangue: _ Isso é um recado d’além mar. Canalhas como você merecem o pior. Enquanto dizia, o outro recobrava os sentidos e ambos retornaram ao carro saindo em disparada. Thiago entrou em casa tentando tomar ciência de seu estado mas já certo de que Osvaldo havia mandado aqueles capangas. Seu corpo todo doía e seu rosto começava a inchar por conta dos socos. Foi para o banho preocupado com Estela. Ao sair do banheiro, ouviu baterem na porta. Era ela, assustada ao ver o estado em que ele se encontrava. Thiago contou a ela o que ocorreu. – Isso é coisa do Osvaldo. Ele tem contatos com a PIDE aqui pois é bem relacionado com os militares no Brasil. Temo por sua vida! – disse ela abraçando-o. Aquela noite foi dedicada a deixar Thiago confortável e tratar suas equimoses. Durante todo o final de semana, Estela passou cuidando de Thiago com extrema dedicação. Nestes dias, relembraram com carinho como se conheceram ainda muito jovens diante do box de Ti Helena no Mercado do Livramento durante a Festa de Sant’iago em Setúbal e como conseguiam esconder o namoro para suas famílias. Na segunda feira pela manhã, como sempre fazia, Estela partiu para a Quinta. Chegando lá, encontrou o portão aberto e viu movimento de vários carros todos pretos e sem identificação. Imaginou ser Osvaldo de volta. Parou seu carro do lado de fora e entrou a pé vagarosamente sem saber o que iria encontrar. Estela foi surpreendida por quatro homens vestindo fatos pretos semelhantes aos descritos por Thiago. Os homens se dirigiram a ela identificando-se como agentes da PIDE e que ela estava sendo presa por subversão da ordem política. _isso é um absurdo, vocês devem estar enganados! – disse ela já sendo algemada. _não importa, senhora. Isto é a acusação formal. Mas estamos com a ação de exílio para o Brasil já expedida. Será expulsa e não poderá mais retornar a Portugal. No Brasil, o Ministro Osvaldo a espera. – sentenciou um dos agentes.
Osvaldo tinha se tornado Ministro de Estado por conta de suas ligações com o poder. Como sabia da recusa de Estela em retornar, fez com que isso acontecesse compulsoriamente. Nem houve tempo para arrumar suas coisas. Foi posta ali mesmo em uma viatura e encaminhada para Setúbal e depois para Lisboa. Tudo já estava pronto e no dia seguinte embarcou num avião militar brasileiro.
Naquela noite de segunda-feira, Estela não apareceu na casa de Thiago como combinado, para fazer os curativos. Nem na terça-feira, o que o deixou muito preocupado. Com certa dificuldade, na manhã de quarta-feira foi até seu carro e partiu para a Quinta da Serra Moura. Ao chegar lá, encontrou um empregado que saía com seus pertences amontoados em uma melancólica carroça. Perguntou por Estela e o empregado contou com detalhes o que havia acontecido. Mais uma vez Thiago perdia sua amada, desta vez proibida de retornar a Portugal. Um pânico tomou conta de seu coração e lívido, entrou em seu carro partindo como um louco na direção do Cabo do Espichel. Desta vez, ao lá chegar, não saiu do carro. Acelerou à toda velocidade possível pela pequena estrada de saibro e saltou o despenhadeiro de mais de 120 metros de altura. Durante o breve voo, em seu delírio mortal, viu sua amada sendo despida de uma grossa casca de cortiça mostrando seu lindo corpo de pele branca e imaculada.
Em Azeitão conta a lenda que até hoje existe um sobreiro que nunca mais se cobriu com sua casca de cortiça para lembrar o eterno amor impossível de Thiago e Estela.

FIM. 


quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

CONDENADO AO PASSADO


Peter não estava se sentindo muito bem. Desde o início da semana que não dormia direito. Apesar de não lembrar de acordar durante a noite, tinha pesadelos frequentes e assustadores que faziam com que acordasse cansado. Sua mãe estava preocupada, achando que ele poderia estar escondendo algo dela. Mesmo sendo já um jovem adulto, perto de seus 20 anos, Peter poderia estar envolvido com alguma coisa que não o estivesse fazendo bem, como drogas, álcool ou coisas do gênero. Ela mesma marcou com o Dr. Robert, médico da família por gerações, para que fizesse alguns exames. Para ela, Peter estava visivelmente anêmico.
- Mãe, não se preocupe. Estou em período de provas no colégio, e preciso me graduar com notas que me deixem apto a ir para a Maryland University. E isso está me deixando extremamente estressado! Já perdi muito tempo depois que papai morreu e agora é minha chance de ser alguém e poder te dar uma velhice tranquila!
A consulta com o Dr. Robert, que analisou o hemograma de Peter e fez alguns testes com ele, confirmou o prognóstico de sua mãe. Peter estava com uma grave anemia. A suspeita de hemofilia era grande. Dr. Robert solicitou um exame de tempo de tromboplastina parcial ativada prolongado com tempo de protrombina e tempo de coagulação normal dentre outros que pudessem confirmar ou não as suspeitas.
Samantha, mãe de Peter, saiu do consultório completamente arrasada. A possibilidade de perder seu filho com uma grave doença a deixava transtornada. Havia perdido seu avô na Segunda Guerra Mundial, seu pai na Guerra do Vietnam e seu marido na Guerra do Golfo, lamentavelmente se tornando umas das 35 vítimas do chamado “fogo amigo”, atingido por engano por soldados de sua própria tropa durante a Operação Tempestade no Deserto. Perder Peter, seu único filho, faria dela uma mulher extremamente infeliz.
Peter tinha certeza de que não estava doente. Algo lhe dizia que aquilo não passava de um distúrbio temporário. Porém, os pesadelos começaram a se tornar mais nítidos e verdadeiros. Neles, Peter lutava contra seres assustadores que o levavam a lugares estranhos onde podia ver outras pessoas e animais cativos sofrendo todo o tipo de intervenções invasivas em seus corpos. E acordava exausto. Fez algumas pesquisas na internet e concluiu que sofria de “Terror Noturno”, uma atividade anormal do cérebro que ocorre durante o sono, segundo os médicos, e que afeta principalmente crianças e raramente adolescentes.
- Sim, é isso! Lembro de ter estes pesadelos desde criança. Agora, com certeza, estão mais graves por causa do stress no colégio. Mas, e a anemia? Tenho certeza de que esta história de hemofilia não é verdadeira. Os exames irão confirmar o que eu já sei.
Numa noite, antes de dormir, encontrou sua mãe na sala, junto à lareira, olhando os porta-retratos com as fotos da família. Neles estavam seu bisavô, seu avô e seu pai. Estranhamente, daquela vez percebeu que agora, já quase adulto, era muito parecido com seu bisavô Walter que morrera na Segunda Guerra Mundial. Haviam várias versões sobre ele. Uma delas, dizia que, mesmo depois de ter sido dado como morto na Segunda Grande Guerra, havia voltado para casa e para os braços de Sarah, sua jovem esposa mantendo em segredo seu retorno para que ela não deixasse de receber a pensão militar. Uma névoa de mistério cercava todas as histórias sobre o velho Walter. Uma outra versão dizia que Sarah, viúva, havia casado coincidentemente com um outro Walter ainda grávida de seu Walter dado como morto. Enfim, ninguém sabia se aquele velho Walter que tanto alegrava as festas familiares com suas piadas e com seu incrível conhecimento científico e suas previsões sobre os acontecimentos políticos e tecnológicos, além de suas memoráveis bebedeiras era o verdadeiro ou o escolhido pela viúva Sarah. Peter olhou ao redor e sentiu uma estranha sensação ao ver os detalhes da velha casa onde moraram todos aqueles que estavam nos melancólicos porta-retratos.
Parecia que sua mãe estava pressentindo algo. Aquela noite não foi uma noite como as outras. Logo depois de adormecer, Peter teve mais um de seus pesadelos realísticos. Mas, desta vez foi grave. Peter acordou no meio da noite, assustado com mais uma crise de terror noturno, mas desta vez, pode constatar que aquilo que vivenciou em suas noites era real. Viu em seu quarto, dois homúnculos de cor cinza que o imobilizaram e com um simples aceno, fizeram com que Peter fosse levado por uma forte luz até o interior de uma pequena nave que pairava sobre sua casa. No interior desta nave, após passar por uma estreita escotilha, Peter foi colocado em uma cadeira, preso por uma energia que não permitia que se movimentasse, por mais que se esforçasse em sair de lá. Pode ver por uma pequena janela, o telhado de sua casa e, rapidamente, seu bairro, sua cidade, seu país e seu planeta. Em instantes, percebeu que a pequena nave entrou em uma outra de tamanho gigantesco. Após ser retirado do transporte que o abduziu, pode ver a enormidade da nave. Nela cabiam navios, aviões, tanques e armamentos de guerra, animais de grande porte, ônibus e até mesmo construções de várias épocas. Era um verdadeiro museu da história da humanidade. Peter foi levado até um setor da nave onde já haviam milhares de portas como um grande presídio. Na entrada de uma das pequenas celas, sua foto junto à porta, com alguma coisa escrita em sinais que mais pareciam hieróglifos indecifráveis. Nesta cela, Peter foi literalmente jogado como um animal. Olhou cuidadosamente para sua cela e viu que parecia com as mesmas que via quando visitava o Zoológico de Maryland, em Baltimore. Num canto, uma bacia metálica contendo água e ao lado, um pote com grãos que mais pareciam com ração destas dadas a cachorros. No canto oposto, um duto onde certamente seria o lugar para suas necessidades fisiológicas. Peter ficou ali, tremendo de pavor, ouvindo todos os ruídos que soavam pelo lugar: gritos humanos, sons de animais, ruídos metálicos, motores, passos, sons eletrônicos. Desta vez, ele tinha certeza de que aquilo não se tratava de um sonho. Realmente, estava consciente de sua abdução. Antes que conseguisse cair no sono, exaurido pelo medo e pelo stress, dois seres de cor cinza, certamente aqueles chamados de Greys pelos ufólogos experientes, chegaram até sua cela e o carregaram arrastando-o por estreitos dutos que se faziam de corredores que conectavam setores da enorme nave. Peter foi jogado em uma maca e examinado, certamente mais uma vez de muitas desde que sua infância. Retiraram amostras de seu sangue, retiraram um implante de algo semelhante à um chip de seu pescoço e implantaram outro. Toda a operação foi feita rapidamente como se os pequenos e violentos Greys tivessem pressa. Com a mesma agressiva pressa, retiraram o pijama que Peter ainda vestia e colocaram nele um uniforme militar. Passivamente, já que não tinha como reagir, pois seu corpo todo estava entorpecido, estranhou o fato e ainda teve como perceber que se tratava de um uniforme de soldado da Segunda Guerra Mundial. Um dos Greys, com uma enorme seringa nas suas mãos de dedos longos, injetou algo no canto de seu olho esquerdo, fazendo com que ele desacordasse de dor.
Peter acordou numa outra sala, desta vez totalmente branca, onde não conseguiu distinguir qualquer detalhe. A luz do ambiente era muito forte, causando a ele uma cegueira temporária. Antes que pudesse tentar perceber onde estava, sentiu seu corpo todo formigar e ao olhar suas mãos, viu por uns instantes que ela começava a desaparecer em pequenos grãos que vibravam e desapareciam.
O sótão parecia familiar. O mesmo espaço, as mesmas estruturas de madeira e as mesmas pequenas janelas que deixavam a luz entrar por suas aberturas junto ao telhado. Peter esgueirou-se até uma delas e pode ver a rua, as casas vizinhas e reconheceu o lugar. Estava de volta à sua casa. Porém, os automóveis eram antigos e as poucas pessoas que passavam pela rua vestiam-se como se estivessem na década de 1940. Pela mesma janela, viu dois oficiais se aproximarem da casa. Pode ouvir os passos no chão de madeira da casa e o ruído de porta se abrindo. Murmúrios de vozes masculinas quase inaudíveis.  Após alguns momentos, estes mesmos oficiais foram embora, entrando em um belo e reluzente Chevrolet preto. Pode então ouvir um choro convulsivo de uma jovem mulher que quebrava algumas coisas como se estivesse revoltada com as notícias trazidas pelos oficiais. Peter, atordoado, não sabia o que fazer. Tinha certeza de ter voltado para casa, mas em outra época. Não lhe restava outra opção senão descer e tentar compreender o que estava acontecendo. Abriu a pequena porta do sótão e desceu vagarosamente as escadas, ainda ouvindo o choro e o som de coisas sendo atiradas contra paredes. Parou sua descida ao deparar-se com uma bela jovem. Era Sarah. Reconheceu-a pelas fotos que sua mãe mantinha num dos porta-retratos. Sarah olhou para Peter e gritou: - Walter!!! – desmaiando em seguida. Peter correu para socorrê-la e ao olhar seus olhos azuis se abrirem e sua boca de lábios cor de rosa dizerem – meu amor, Peter resignado, não se conteve. Sentiu uma vibração no chip implantado em seu pescoço e uma incontrolável compulsão em beijá-la profundamente.

  


 

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Papo Reto

- Cara, eu fui até lá.
- Onde?
- Do outro lado, cara! Quando a gente morre! Lembra daquele papo que tivemos sobre o que rola depois da morte?
- Jura? Não acredito!
- Sim, eu fui. E foi terrível. Assustador!
- Mas, o que você viu? Você morreu, tipo, morreu e voltou?
- Sei lá. Eu não quero nem me lembrar. Dá um medo do caralho!
- Mas, medo de quê? De voltar lá?
- É, cara. Dá o maior cagaço de voltar lá. A galera lá é sinistra!
- Mas, tem alguém lá? Vive gente do outro lado?
- Sim, mas não como nós. São terríveis, horrorosos, verdadeiros monstros assustadores.
- Porra, você tá brincando? Tá imaginando coisas, cara. Deve ter cheirado algum bagulho ruim. Tá tomando ácido? Fumando crack? Já disse prá não entrar nessa trip que não tem volta!
- Quem dera tivesse sido uma viagem. Mas foi real. Muito real.
- Mas como você foi parar lá? Falamos sobre se existia ou não o outro lado, mas nunca em como chegar lá sem ter morrido!
- Sabe aquela vidente aqui do bairro, aquela cigana que nossas mães viviam indo quando a gente era moleque?
- Aquela gostosa da D. Neusa? Sei. Eu fiquei sabendo.
- Sabendo de quê?
- Minha mãe foi no enterro.
- De quem?
- Da Neusa, porra!
- Quando foi que ela morreu?
-Semana passada. Acho que foi na terça-feira. Mataram ela.
- Impossível.
- Por que?
- Ela veio aqui em casa ontem.
- Caralho! Como assim?
- Bateu na porta, eu estava sozinho. Atendi e ela entrou de boa. Me deu um vidro desses que tem xarope prá tosse e falou prá eu beber tudo. Ela estava estranha, me olhando fundo nos olhos e acho que me hipnotizou, sei lá. Ela disse que se eu bebesse, ia ver com meus próprios olhos para onde eu iria se eu continuasse a fazer as merdas que eu ando fazendo. Mas, antes ela me contou umas paradas sinistras.
- Que merdas, cara? A gente tá devagar com as paradas erradas.
- Ah, não fode! Quer dizer agora que roubar os outros e matar otário não é fazer merda? Galera que mata os outros na covardia, quando morre vai direto prá esse lugar dos infernos. Mas, D. Neusa me pediu prá fazer uns lances aí prá eu me livrar daquele lugar. Papo de justiça divina, vingança, essas paradas misteriosas, sabe?
- Porra, faz tempo que não rola nada, só uns bagulhos prá descolar uma grana. O trampo tá foda de conseguir e quando consegue, os caras te pagam uma merreca! Não dá nem prá dar uma moral em casa. Mas, porra e aí? Você bebeu o bagulho que ela ter deu?
- Bebi. Ela me olhava no fundo dos meus olhos, cara. Bebi e apaguei. Quando acordei, estava naquele inferno. Só voltei quando ouvi a voz dela me chamando. Mas o pior foi o que aconteceu depois.
- Qual é, tem coisa pior?
- Sabe o Nelio?
- Tá sumido. Acho que aprontou alguma merda e fugiu. Meteu o pé. Vazou!
- Pois é. E nem vai voltar.
- Por que?
- Eu matei ele.
- O quê? Tá de sacanagem comigo!
- Dei um tiro na cara do babaca e joguei ele lá no rio com um sapato de cimento. Esse não aparece mais.
- Ih, fodeu!
- Por que? Ninguém vai saber!
- Foi ele quem matou a D. Neusa. Entrou na casa dela doidão, estuprou a coroa, esculachou mesmo. Depois cortou o pescoço dela. Levou tudo. Ouro prá caralho, grana e o celular.
- Ué? Como você sabe que foi ele?
- Porra, foi mal. Eu estava junto. Mas eu não comi a coroa não. Só segurei pro Nelio fazer o serviço. Mas até que deu vontade. A coroa continua gostosa. Mas esse negócio de compartilhar mulher na hora da foda não rola comigo. Ainda mais estupro. Comigo o negócio tem que ser no carinho. Mas sabe como o Nelio é. O cara fica boladão depois que cheira.
- Você ajudou a matar a D. Neusa?
- Pô, era prá ser só assalto, mas o filho da puta do Nelio não de aguentou quando viu a coroa. Puta peitão, bundão, ele partiu prá cima. Ela tentou se livrar mas ele rasgou o pescoço dela. O pior foi arrancar os dentes de ouro dela. E tinha muito dente, cara. Cigano é foda!
- Cara, não acredito que você fez isso. Até os dentes? Caralho!
- Acho que ela nem me viu direito. Eu estava segurando ela por trás enquanto o Nelio esculachava. E a parada rendeu uma grana responsa!
- Fala aí! Matou o Nelio por que?
- Ele se jogou prá cima da Catiane. Veio cheio de conversinha e deu prá ela uns cordões de ouro. Agora eu sei de onde vieram. O filho da puta acabou comendo aquela piranha. Descobri a parada toda e apaguei os dois.
- Caralho! Matou a Catiane também? Cara, na boa, você sabe que eu tô fora dessa. Esse lance da Catiane com o Nelio, porra, sei lá. Tá muito estranho, cara. Porra, logo a Catiane? Ela não tinha nada com o Nelio, cara. Tu fez parada errada, cara! Ela tava grávida, porra!
- Grávida? Como você sabe disso? Ela estava comigo e eu não sabia desse lance de gravidez, brother! E tava parado na dela, aquela vadia! Mas o que tá feito tá feito. Não tem volta. Aliás, se estava grávida, o filho nem devia ser meu.
- Não. Não era não. Ela me contou.
- Então era do Nelio?
- Cara, sei lá. Acabou, não? Já morreram. Encerrou a conversa. Mas, só quero saber quem dedurou os dois.
- A Neusa. Não disse que quando ela veio me procurar ela me contou umas paradas sinistras? Era sobre os dois.
- Impossível!
- Cara, você tem certeza de que vocês mataram a D. Neusa?
- Porra, cara! O Nelio cortou o pescoço dela até ficar pendurado! Me deu até vontade de vomitar. Se não fosse uma cafungada no bagulho eu não ia ter coragem nem de ajudar a arrancar os dentes. Mas ele tava com um pó de primeira. Coisa fina de playboy cascudo! E ninguém desconfia de mim. Ela morreu, o Nelio morreu e eu estou tranquilo. Só você sabe da parada. Mas você é meu brother e vai ficar de boa, né? Já te disse que minha mãe foi no enterro! D. Neusa já era!
- Então como você me explica ela ter vindo até aqui? Será que ela desconfia de você?
- Qual é, cara! Assim você me assusta com essas paradas de assombração! Já te falei! D. Neusa tá mortinha! Game over!
- Na verdade, acho até que ela sabia que você vinha aqui hoje.
- Heim? Que papo é esse, brother?
- É papo reto! Olhe para trás. Perdeu, otário!
- D. Neusa? Não! Não! Por favor!


Fim.