Rua Delgado de Carvalho. Fui criado nesta rua. Uma tranquila rua no bairro da Tijuca,
antes um bairro adorável, com gente alegre e famílias tradicionais. Depois de
casado, saí de lá para tentar a vida. Foi como sair da zona de conforto e
entrar num mundo feroz, de muita luta e poucos momentos de tranquilidade.
Depois de um tempo fora do Rio, trabalhando em São Paulo, recebi um convite irrecusável
para retornar ao Rio. O destino me levou novamente à mesma rua, que tinha um
apartamento ao lado do prédio onde cresci. Aluguei o apartamento do quarto
andar. Amplo, com uma enorme sala, e uma vista para as copas dos oitizeiros que
sombreavam a rua. Apenas um detalhe não nos deixava à vontade na janela. Por
estar ao nível da copas das árvores, as janelas estavam, também, ao nível do ninho
de um pequeno gavião que costumava atacar nossas cabeças indefesas.
O prédio era um antigo conhecido. Lembro de um colega de
colégio, o José, que morava no primeiro andar quando eu era criança. Filho de
pais velhos, tinha todos os brinquedos que nós crianças normais desejávamos
ter. Passei muitas horas de meus dias brincando em seu apartamento. Meu irmão
também namorou uma bela menina que lá viveu e que gostava quando eu usava meu
perfume preferido naquela época: Vitesse. No terceiro andar vivia uma rica
família (para os padrões da época) donos de uma empresa de ônibus cujos filhos
se divertiam em corridas de velozes karts nas pistas de Jacarepaguá. Mas, no
meu retorno ao bairro, agora como um membro do prédio que tantas surpresas me
provocou, agora era como uma fotografia desbotada. Dos antigos moradores,
somente a filha do rico empresário que, soube mais tarde, foi sócio do antigo
proprietário do apartamento que aluguei na construção do prédio, agora não tão
rica depois de perder os pais e as empresas.
O apartamento fora deste rico português, dono de vários
imóveis no subúrbio e de uma empresa de pneus e acessórios de automóveis,
comprada depois de anos por um rico senador da república que a transformou num
poderoso grupo com tentáculos corruptos em diversas áreas, terminando por ser
descoberto e arruinado política e profissionalmente. Ao separar-se de sua
esposa, rico, foi morar com uma jovem num famoso bairro da zona sul, deixando o
apartamento para a ex esposa depois da partilha dos bens feita no divórcio. A
quantidade de imóveis deste português era tamanha que ele possuía uma empresa
somente apara administrar seus bens. E este apartamento estava entre os imóveis
que ele administrava para sua ex esposa com quem mantinha uma cordial relação.
Após a separação, ela permaneceu no apartamento durante alguns anos, amasiando-se
com seu motorista que acabou assumindo o romance indo morar com ela no
confortável apartamento. Homem cuidadoso, adorava o imóvel e o mantinha sempre muito
bem cuidado. Não sei em que circunstâncias, este homem faleceu no apartamento,
levando a mulher e sua filha saírem de lá e irem morar no subúrbio, certamente
de onde saíra antes de enriquecer. Desta maneira, o apartamento ficou
disponibilizado para aluguel.
As informações que passei agora para o leitor que chegou até
aqui, só passou a ser de meu conhecimento após a série de eventos que vou
relatar em seguida.
Minha esposa tinha o hábito de, após levar as crianças ao
colégio, dar uma caminhada pelo bairro, como forma de exercitar-se. Tínhamos
uma faxineira que ia uma vez por semana limpar o apartamento. Certa vez, ao
chegar em casa, minha esposa encontrou esta pobre mulher no meio da cozinha, no
alto da escada de armar, almoçando assustada. Ao ser perguntada por que estava
ali, respondeu que, ao limpar a sala, olhou para o corredor do apartamento e
viu, claramente um homem sair de nosso quarto, atravessar o corredor não sem
antes olhar para ela, e entrar no quarto que era usado como escritório. Minha
mulher desconversou e, quando cheguei, comentou o assunto, um pouco descrente
sobre o que a faxineira havia relatado. O interessante é que esta nunca mais
voltou. Uns tempos depois, minha sobrinha veio passar uns dias de férias em
casa com minhas duas filhas. Após ficarem ela e minha filha mais velha,
assistindo TV até tarde, olharam para um grande espelho que ficava no fundo da
sala e avistaram uma figura, não muito clara, que as deixou assustadas. Esta
mesma filha mais velha, nunca, desde que mudamos para o apartamento, saía de
seu quarto sem passar correndo pela sala com medo de não se sabe o que.
Perguntávamos a ela e ela não sabia o motivo de tamanho medo em passar pela
sala. Certa vez, num verão tempestuoso, eu e minha esposa acordamos no meio da
noite com a forte chuva e o vento que fazia com que as copas das árvores
batessem nas janelas. Levantei lembrando que havia deixado as janelas da sala
abertas e fui até lá, caminhando às escuras como de costume. Fechei as janelas
que, abertas, faziam as brancas cortinas se lançarem contra as costas do sofá
do jardim de inverno. Ao virar para retornar ao quarto, olhei a sala iluminada
pelos postes de luz de mercúrio da rua e vi, sentado na poltrona da sala
principal, um homem. Ele olhava para mim com a segurança de quem estava
confortável ali. Parei, incrivelmente sem sentir medo algum, e olhei firme para
a imagem que, imediatamente se dissipou como areia ao vento. Fui até o quarto e
chamei minha esposa para tomar um chá, já que o fato havia retirado de mim todo
o sono. Enquanto servia a xícara com água quente na mesa da copa, minha esposa
disse que, após eu sair do quarto, teve a certeza de ter visto um homem junto à
porta de nosso quarto, enquanto eu estava na sala fechando as janelas. Respondi
de maneira bem humorada, que este homem estava, na verdade, sentado no sofá da sala. Calados, voltamos para o quarto, tentando dormir como se houvéssemos tido
um estranho sonho partilhado.